sábado, 23 de abril de 2011

Sobre "falas", "escutas" e controles

Sigo na minha análise das reportagens. Acho que vou excluir o jornal "Pioneiro" da minha análise. Apesar de manter algumas diferenças, normalmente o Pioneiro traz as mesmas matérias da Zero Hora, diferenciando-se apenas em relação ao conteúdo regional. Dificilmente a abordagem dos temas muda de um jornal para o outro, e muitas vezes as reportagens são praticamente (quando não são de fato) idênticas. Creio que vou poupar tempo (e estômago) examinando apenas o Correio do Povo e a Zero Hora daqui por diante. Tenho que lembrar que isso aqui não é uma pesquisa para uma dissertação, nem algo parecido.

Peguei hoje os jornais do dia 09/04. Acho que notei uma certa tendência da Zero Hora em enfatizar o sofrimento das famílias das vítimas, da comunidade, e os discursos sobre como pais e professores devem abordar o assunto com seus filhos e alunos. O Correio do Povo, por sua vez, está dando mais destaque para o que autoridades estatais de diversos níveis tem a dizer e o que estão propondo fazer a respeito do ocorrido.

A capa da Zero Hora desse dia traz em letras vermelhas a frase "O QUE DIZER ÀS CRIANÇAS" e, como podem notar, não era uma pergunta. Internamente, a matéria recebe o título "Discuta a chacina com as crianças" (fl. 40) na forma imperativa que reproduzo. Não está em questão, de forma imediata, se devemos ou não falar sobre isso - a questão está em como falar. Talvez isso seja um desdobramento do tal "debate exaustivo" defendido no Editorial publicado no dia anterior e que comentei em outro post. A matéria começa contando a história de um professor que chega em sala de aula e encontra os alunos só falando a respeito da chacina, tendo dedicado a aula para falar do tema. Após colocar a pergunta "Como explicar o que foge a toda racionalidade?", segue-se a manifestação de duas psicólogas sobre como falar com as crianças a respeito dos acontecimentos e sobre como agir e não agir diante das crianças. A matéria termina com a manifestação de uma conselheira da Associação Brasileira de Psicopedagogia: "- Se o tema vier, tem que falar. Mas se não vier e for possível evitar falar, melhor." As três são indicadas como fontes de um quadro de informações apresentado no meio da página seguinte, intitulado "Um tema que merece ser debatido" (fl. 41), que apresenta os seguintes tópicos: "Quando não falar", "Quando falar", "A importância de ouvir" (aqui, aliás, foi colocada uma das declarações que eu achei mais interessantes - Se o adulto desviar do assunto, pode acontecer de a angústia permanecer dentro da criança, virando um medo mais permanente), "A mensagem a passar", "Com que profundidade falar do assunto", "Conter o próprio nervosismo", "Quando filtrar".

Ao lado desse quadro, está uma entrevista com alguém que é apresentado, em destaque, como doutor em Psicologia, e posteriormente informado que se trata também de um professor universitário, encabeçada por uma frase em destaque dita pelo entrevistado: "A pior coisa é fingir que não aconteceu". As perguntas reproduzidas na entrevista foram:
"As crianças expostas ao noticiário do massacre podem desenvolver algum transtorno?"
"De forma geral, qual é o impacto desse episódio nas crianças?"
"As crianças brasileiras terão de passar por isso?"
"O que fazer se a criança ficar com medo de ir para a escola?"
"Como as escolas devem tratar o tema?"
Em resposta à segunda pergunta, o entrevistado termina sua resposta dizendo que "O sentimento de perda é de todo o Brasil. A sociedade está em luto. O luto passa por cinco fases: raiva, negação, negociação, culpa e aceitação da perda." Por isso a terceira pergunta foi se as crianças teriam que passar por isso, ou seja, passar por essas "fases do luto", ao que o entrevistado respondeu inclusive que, ao ser atrapalhada a "elaboração do luto", "A criança pode ficar travada no meio do caminho, na raiva, na culpa." Interessante notar que, nessa resposta, poderiam ser citadas quaisquer fases do luto abordadas anteriormente, mas o entrevistado cita a raiva e a culpa. Por que não a negação ou a negociação?

Para mim, a "preocupação" que está colocada é com um possível "trauma" que possa ser causado às crianças que estão acompanhando os fatos através dos diversos meios de comunicação. Essa preocupação, contudo, não me parece traduzida em termos de uma preocupação com um genérico "bem-estar" dessas crianças, mas sim com um possível abalo psíquico que possam sofrer por elaborarem "mal" essas notícias.  As perguntas feitas na entrevista estão atravessadas por essa preocupação, na minha opinião, desde a primeira, que já traz o questionamento sobre um possível "transtorno" que possa  ser produzido. Considerando que está se falando de um acontecimento cuja "causa" é traduzida em termos de "desequilíbrio psíquico" do agente, parece que há uma preocupação que, com esse fato (ou melhor, por conta das notícias sobre esse fato), possam se produzir mais "transtornos" e "desequilíbrios", potencializando o "perigo".
Temos, então, a ênfase na "fala". Essa "fala", parece-me, é trazida como mecanismo principal para evitar que esse "perigo" seja gerado - "falar" torna-se não uma alternativa, mas um imperativo - uma ferramenta para que ocorra uma "elaboração adequada" acerca desse evento, evitando que se traduza em termos de "raiva", "culpa", ou de a "angústia permanecer dentro da criança". Quem é chamado para defender a importância dessa fala? Os profissionais da "escuta": os psi. Diante desse contexto, no entanto, entendo que a "fala", mais do que um mecanismo terapêutico, representa a possibilidade de se descobrir o que está "no interior" do sujeito - se o perigo vem de dentro (de um "desequilíbrio psíquico") devemos fazer os sujeitos falarem sobre o que está "dentro deles" para que possamos saber que outros perigos podem estar por aí.

Na mesma página é apresentado um artigo de alguém que é qualificada como "jornalista de 35 anos, mãe de uma criança de seis anos", intitulado "Como explicar o horror?". Um trechos desse artigo chamou minha atenção:
"O horror não se explica por situação econômica, social, cultural ou geográfica. Ele pode estar dentro de nós, humanos que somos. Aquela parte sombria, adormecida, terrível e sórdida que, em algum momento, pode tomar a forma de um rapaz que assassinou nossos filhos"
Aqui transparece a ideia que comentei antes, a de que o perigo está dentro de nós, e potencialmente dentro de todos nós. O início da fala afasta alguns determinismos que orienta(r)m algumas políticas na área da segurança pública e, ao mesmo tempo, aponta esse "determinismo" que eu comentei em outro post: um "determinismo psíquico", em que no "interior do sujeito" está a raiz para os atos que ele irá cometer e a medida do perigo que ele representa. Será que as políticas a serem produzidas a partir desse determinismo produzirão a vigilância de todos, por todos?

Um dos editoriais da Zero Hora foi sobre os acontecimentos, intitulado "Trauma coletivo" (fl. 16), afirmando que esse é o momento das famílias e escolas enfrentarem o trauma coletivo vivido pelas crianças diretamente envolvidas e pelas que acompanharam de alguma forma o ocorrido por todo país. Fala ainda que "Os mesmos meios de comunicação que têm dedicado amplos espaços à chacina vêm se encarregando de alertar uma sociedade  ainda sob o efeito do choque para a necessidades de haver o máximo possível de transparência em relação ao ocorrido." Novamente, temos aqui a ênfase na necessidade de falar sobre o que aconteceu, de haver o máximo de transparência (para que nada fique oculto?). Concluindo ainda que: "Esse é um aspecto particularmente importante: evidenciar o fato de que cada indivíduo é responsável pela construção de um mundo menos violento." Esse raciocínio traz consigo também a ideia de que a violência é uma questão de indivíduos, de condutas individuais, o que invisibiliza a compreensão da violência como uma questão social e cultural, ideia que também apareceu no artigo que comentei anteriormente.

Ainda, nesta edição, a coluna de abertura da Zero Hora, escrita pela Cláudia Laitano, foi sobre o ocorrido, e um trecho dela traduz o que está sendo feito dos acontecimentos do Realengo:
"Foram muitas as abordagens da tragédia de Realengo nas últimas horas - algumas apressadas demais, outras irresponsáveis até, mas todas, de alguma forma, refletindo uma necessidade urgente de digerir em conjunto essa dor. [...] a última quinta-feira vai ser lembrada como o dia em que o Brasil chorou - não apenas as mortes das crianças do Realengo, mas a impossibilidade de proteger nossos filhos do imprevisível."

No Informe Especial (fl. 3), um quadro traz a seguinte colocação:
"Caindo de maduro. Se a doença mental do assassino do Realengo tivesse sido diagnosticada e tratada, hoje o Brasil não estaria discutindo a segurança nas escolas."

Na seção de artigos, dois dos três apresentados tratam dos acontecimentos no Realengo (fl. 17). Num deles, intitulado "Que as crianças me perdoem", o autor faz alguns questionamentos em relação ao direcionamento da discussão em torno da tragédia, principalmente das medidas a serem tomadas: "Frustrados na expectativa de obtermos uma confissão, somos levados a mudar o foco da nossa indignação. Pouco importa que nas escolas públicas do Rio não haja porteiros nem guardas, o que é necessário é um controle maior das armas, mesmo sabendo-se que temos a mais rígida legislação sobre o assunto da América Latina. Pouco importa que o atirador, sem idade para a aquisição legal de arma de fogo, as tenha obtido no mercado negro, disponível nas diversas favelas cariocas onde a polícia não se atreve a entrar. Pouco importa se não temos acesso psiquiátrico facilmente disponível no nosso sistema de saúde para a prevenção de um surto esquizofrênico dos doentes latentes."
O artigo direciona as medidas a serem tomadas para as seguintes: prevenção situacional (porteiros e guardas nas escolas), combate ao contrabando de armas (por meio do controle das favelas) e atendimento psiquiátrico (para prevenção de surto em doentes latentes). Acho que li alguma coisa sobre a tendência de enfoque na prevenção situacional no livro Cultura do Controle, do Garland... Aliás, as duas outras medidas também se caracterizam por buscarem um controle, seja das favelas, seja dos "doentes latentes".

No outro artigo, intitulado "Tragédias em espaço sagrado", os acontecimentos no Realengo são encaminhados pela autora como uma necessidade de "[...] uma grande discussão pública que busque revisar todo o sistema educativo, o que inclui a educação formal da escola e a educação familiar." É o primeiro movimento que vejo no sentido de colocar o ensino em questão por conta dos acontecimentos no Realengo. Não a estrutura das escolas, mas o ensino mesmo, com o que está implicado nele e, nesse ponto de vista, necessita de mudança.

Na coluna "Brasília" (fl. 17), uma nota intitulada "Reação" informa que na semana seguinte iniciam as reuniões do governo sobre a criação de um novo projeto para incentivar o desarmamento no país, a ser elaborado pelo Ministério da Justiça e pela Secretaria dos Direitos Humanos.

Paulo Sant'Anna, em sua coluna, intitulada "Paraíso e inferno", fala sobre "os dois hemisférios do cérebro do assassino", onde um seria "completamente avariado, doente", e o outro seria "saudável, raciocinante", concluindo com a colocação de supostas antíteses: "Como pode aquela beleza natural carioca abrigar tanto sangue derramado pelo crime? Como pode uma cidade tão musical, tão romântica, tão poética, ser ao mesmo tempo a mais violenta e a mais sangrenta do país?" O questionamento em torno dessas antíteses também é a sua afirmação enquanto antíteses e a afirmação de que existem tais antíteses. Será a emergência de uma lógica antitética que, ao mesmo tempo que diminui as fronteiras entre o "bom cidadão" e o "violento psicopata", por afirmar a possibilidade de encontro dessas duas personagens em uma mesma pessoa, coloca a necessidade de vigilância de todos por todos?

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