quinta-feira, 21 de abril de 2011

Situações previsíveis, sujeitos identificáveis: produção de sentidos sobre Realengo em um Editorial de ZH

Só depois que terminei o último post é que me dei conta que eu tinha esquecido de comentar um dos textos publicados no dia 08/04 em que eu encontrei mais "material": o editorial da Zero Hora intitulado "O que fazer com essa dor?" (fl. 18).

Quando eu estava terminando esse post é que me dei conta que o próprio título do Editorial é significativo. Na primeira vez que eu li "O que fazer com essa dor?" imaginei como sendo a pergunta que as pessoas poderiam estar fazendo a si mesmas, como viver num mundo em que coisas assim acontecem, como viver num mundo depois que tais coisas acontecem. Ou seja, para mim, era algo como se a pergunta refletisse um questionamento do próprio leitor: "O que EU faço com essa dor?" Só agora me dei conta que esse título pode indicar uma pergunta que os editores da Zero Hora poderiam estar fazendo não a si mesmos, mas uns aos outros: "O que NÓS vamos fazer com essa dor?" O texto do Editorial, por sua vez, é a resposta - indica o que eles fizeram com "essa dor", ou seja, quais sentidos foram produzidos a partir d"essa dor" que não é minha, sua ou deles, mas de todos e de ninguém.

Um trecho do texto em destaque aponta a necessidade de um "debate exaustivo" e que "O desafio da sociedade brasileira, das autoridades e dos cidadãos, dos pais, e dos educadores, é transformar essa dor coletiva em prevenção." [destaques nossos]

O que será esse "debate exaustivo" que está sendo colocado? Será uma convocação para que as pessoas falem e pensem a respeito do ocorrido? Ou será o anúncio prévio de uma série de matérias que irão explorar o ocorrido e, de certa forma, justificando e legitimando a eventual superexposição e abuso cometido pelos veículos de comunicação, algo do tipo, "existem outras coisas acontecendo, mas nós (e você) temos que falar disso!"?

As figuras trazidas para esse debate são as "autoridades", os "cidadãos", os "pais", os "educadores". Talvez seja um indicativo de onde que se espera que sejam adotadas as medidas para obter a "prevenção" almejada: nas políticas públicas de segurança (autoridades), nas relações no espaço público (cidadãos), nas famílias (pais) e nas escolas (educadores). Além disso, pode estar "amarrando" esses atores em torno de uma mesma política, como se todos estivessem em busca de um mesmo objetivo (colocado genericamente como a prevenção) que dependeria da co-legitimação uns dos outros, um desafio, ou seja, algo que é difícil, mas que pode  ser alcançado.

O editorial começa afirmando que o País está chocado, e segue apontando as razões para o espanto causado pelo episódio do Realengo. Dentre os pontos destacados está que:

"[...] ele não tinha antecedentes policiais e nada - a não ser seu comportamento introvertido - indicava tratar-se de uma pessoa com transtorno mental e potencialmente perigosa. Mas era." [destaques nossos]

Aqui é feita uma relação extramente discutível entre comportamento introvertido, transtorno mental e periculosidade do sujeito. O sujeito é colocado como potencialmente perigoso, como se o fato ocorrido fizesse parte de uma cadeia de perigos que possivelmente poderiam ser causados por aquele sujeito. O fato de afirmar-se que o sujeito não tinha antecedentes criminais é significativo. Quando é feita uma referência aos antecedentes criminais, muitas vezes é colocado que, apesar de todos os seus antecedentes, o sujeito continuava "solto", como se fosse uma falha do sistema de justiça e das políticas de segurança pública não manter nenhuma espécie de controle sobre aquela pessoa que "já tinha antecedentes". O determinismo, que talvez nesses casos seja colocado como social, pois, aquele que tem antecedentes, provavelmente terá "sucedentes", desloca-se para um determinismo "psíquico". Transformando-se a frase do editorial para uma mais na ordem direta, teremos o seguinte: "Era uma pessoa com transtorno mental e potencialmente perigosa, o que era indicado por seu comportamento introvertido." É dada a causa (transtorno mental), a consequência (perigo) e o modo de identificação (comportamento introvertido).

Seguindo:

"[...] Ainda que a motivação do desvairado atirador do Realengo pareça resultar de um desequilíbrio psíquico relacionado ao fanatismo religioso [...] crimes semelhantes registrados em outros pontos do planeta remetem a causas que podem ser trabalhadas de forma preventiva. Veja-se, por exemplo, a questão da violência escolar e do bullying [...]"

Bem, aqui temos a dicotomia entre o ser e o parecer e, através disso, um outro sentido é dado ao acontecimento do Realengo. O Editorial coloca que, apesar de parecer ser uma situação que estaria vinculada apenas a questões psíquicas e religiosas, suas "raízes" estariam em outros lugares, outras "causas", que podem ser trabalhadas de forma preventiva. Nesse ponto, é feita a ligação entre as mortes no Realengo, a "violência escolar" e o bullying. Essa relação também é interessante. Acho que os acontecimentos no Realengo não se enquadram naquilo que é usualmente mostrado como episódios de "violência escolar" - mesmo em situações que envolvem mortes, o número de vítimas ou as características peculiares desse acontecimento (como a carta deixada por Wellington) não permitem que ele seja enquadrado como "mais um episódio de violência escolar", mas ele foi um episódio de violência dentro da escola. É como se o Editorial criasse uma escala entre esses três elementos, em que a ligação entre eles seria a de episódios que envolvem violência no ambiente escolar, do "menos" ao "mais" grave, : o bullying, a violência escolar, e as mortes na escola no Realengo. Se há uma escala, é possível uma "escalada" do menos grave ao mais grave, assim, de alguma forma, na lógica do Editorial, se não prevenirmos o bullying, o resultado serão muitos casos como o do Realengo.
Para mim, transparece aqui a lógica do Zero Tolerance, sendo feita uma relação entre delitos e incivilidades, como se pudéssemos chegar aos primeiros a partir de uma "escalada" dos últimos.

"[...] Escolas que pregam uma cultura de paz, com ações práticas voltadas para este objetivo, reduzem significativamente o espaço para violências e tragédias."

"Cultura de paz"... onde foi que eu já ouvi isso? Ah, sim, aqui! Será que a ZH vai começar a defender a JR agora? Se for isso, por quê? Ou será apenas uma aliança casual para reforçar o argumento de que o sujeito que comete bullying hoje é o que irá cometer assassinatos amanhã?

"[...] Inadiável, também, é o ataque ao problema das drogas, tanto no ambiente escolar quanto no familiar. A tolerância com as drogas lícitas por parte dos adultos é reconhecida por especialistas como estímulo para os jovens ingressarem na viagem quase sempre sem volta dos tóxicos."

De alguma forma, as drogas entraram num editorial que começou abordando as mortes ocorridas na escola no Realengo. Qual caminho traçamos até aqui? Das mortes no Realengo, à violência escolar, ao bullying e agora... às drogas. Nos primeiros três termos desta série, indicamos que pareciam estar unidos nessa lógica pela "violência" e pelo "ambiente escolar". Por indução, agora que é adicionado um quarto termo à série (as drogas), num discurso que não mais se restringe ao "ambiente escolar", mas aos jovens em geral, o que permanece dando "ligação" a esses termos é a "violência". Temos aqui a ligação entre as ideias de juventude, drogadicção e violência. Quais atitudes devem ser tomadas? Bem, a "tolerância" é apontada como O problema, assim, em sentido contrário, a "intolerância" deve ser A solução.

Além disso, podemos ver a confirmação daquilo que observamos no início do Editorial: os espaços de intervenção não se restringem ao governo (autoridades), nem a escola (educadores), nem só a família (pais), mas atravessam os três. Isso fica ainda mais claro na frase seguinte:

"Compete à autoridades a implementação de políticas públicas preventivas e de programas de tratamento e recuperação, mas também é dever de pais e professores a orientação adequada, a identificação de condutas antissociais a proteção e o acompanhamento de crianças e adolescentes que precisam de ajuda."

Aqui temos mais um termo adicionado à nossa série: as condutas antissociais. De alguma forma, o Editorial relaciona: 1. Mortes na escola no Realengo. 2. Violência escolar. 3. Bullying. 4. Drogas. 5. Condutas antissociais. Faz essa relação como se ela fosse evidente, sem maiores explicações, como, aliás, ela já estivesse dada.

O que deve ser feito? Deve ser dada orientação (não uma orientação qualquer, mas a orientação adequada), deve ser feita a identificação de condutas (aquelas tidas por antissociais), e deve ser feita a proteção e o acompanhamento de  crianças e adolescentes (De todos? Não, somente daqueles que precisam de ajuda).

Aqui, três ideias estão postas:

1. Existem orientações adequadas e outras que não o são;
2. Existem condutas que são antissociais e outras que não o são.
3. Existem crianças e adolescentes que precisam de proteção e acompanhamento e outras que não precisam.

Com relação a essas "crianças e adolescentes que precisam de ajuda", meu primeiro pensamento foi em relação àquelas ditas em situação de vulnerabilidade social, mas pensei agora se, mesmo em relação a estas, não está sendo dito que haveriam aquelas que "não precisam" de ajuda - não porque são entendidas como dentro da norma, mas porque não valeriam o "investimento".

A Carol me alertou para uma questão importante: duas expressões foram usadas há alguns parágrafos atrás: desequilíbrio psíquico e fanatismo religioso. Até aqui, o desequilíbrio psíquico, na verdade, não saiu da pauta. As situações abordadas (violência escolar, bullying, drogas, condutas antissociais) estão todas relacionadas ao desequilíbrio psíquico, seja como situações que aparecem como provocadoras de desequilíbrio psíquico, seja como situações que são ditas reflexos dele.

"Embora se saiba que pessoas saudáveis e bem formadas não se deixam influenciar por apelos externos, os excessos devem servir de alerta para que não degenerem em fanatismo. [...] Fundamentalismo de qualquer espécie e moralismo exacerbado também merecem total atenção [...]"

Aqui temos a ênfase na importância de termos "pessoas saudáveis e bem formadas", pois estas, segundo o Editorial, não se deixariam influenciar por apelos externos e, em última instância, causariam risco a outras. Mesmo estas, contudo, devem ser mantidas sob vigilância, pois a qualquer momento podem se "degenerar" e, assim, representarem um risco aos demais. A menção ao "fundamentalismo de qualquer espécie e moralismo exacerbado" me fez lembrar dos pentecostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus. Coincidência, ou não, a IURD é dona do jornal Correio do Povo, concorrente histórico do jornal Zero Hora e o bispo Edir Macedo, da IURD, é possui a concessão da TV Record, que vem fazendo concorrência ao grupo Globo e, por consequência, à RBS, proprietária do jornal Zero Hora. Sei lá, isso soou muito "teoria da conspiração", mas foi uma relação que me veio à cabeça.

"Considerando-se que a literatura médica registra a existência em qualquer sociedade de um índice elevado de psicopatas em potencial, é decisivo que os sinais sejam identificados, para que essas pessoas possam ser mantidas sob controle ou encaminhadas a tratamento adequado."

Bem, aqui temos o golpe de misericórdia. Legitimando-se no discurso do saber médico, o Editorial naturaliza a existência do que chama de "psicopatas em potencial" os quais, por sua vez, devem ser mantidos "sob controle" ou "encaminhados a tratamento adequado". Pergunto-me o que será o "sob controle"? Pois, pelo texto, não tem nenhuma relação com o tal "tratamento adequado". Além disso, tais "psicopatas em potencial" apresentam "sinais" que possibilitam a sua identificação. Qualquer semelhança aqui com a antropologia criminal do Lombroso não deve ser mera coincidência. Temos aqui a complementação da construção que se apresentou no começo do Editorial: Realengo e outras situações as quais se queira assemelhar não são apenas situações previsíveis - possuem sujeitos causadores identificáveis previamente. Nessa lógica, o verdadeiro espanto talvez não seja porque as mortes do Realengo aconteceram, mas sim por que não aconteceram antes, pois tudo estava em curso para atingir aquele resultado. É o que, para mim, pretende dizer o fechamento do Editorial:

"Mas depois das lágrimas, temos todos que agir. Há muito o que fazer a partir dessa dor imensa que a população brasileira compartilha com os familiares das vĩtimas desta insanidade inexplicável, irreparável e insuportável - mas, quem sabe, previsível."

Se os trechos acima foram retirados daquilo que representa a política editorial da Zero Hora, já podemos ter alguma ideia de como os acontecimentos no Realengo serão explorados nas próximas edições do jornal.

Nenhum comentário:

Postar um comentário